Em setembro de 2015, o filósofo Roberto Mangabeira Unger, alegando problemas de saúde na família, pediu demissão do cargo deministro de Assuntos Estratégicos do governo Dilma Rousseff e voltou para os Estados Unidos e para seu cargo de professor na Universidade Harvard. Mangabeira não desistiu, porém, de influenciar os rumos da política nacional.
Voltou a se filiar ao PDT para se engajar no projeto de uma nova candidatura presidencial do ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes, a quem já assessorou em duas tentativas anteriores, em 1998 e 2002, de chegar ao Palácio do Planalto. Mangabeira acredita que o esgotamento do ciclo “nacional-consumista”, como ele batiza o modelo de desenvolvimento patrocinado pelo PT, abre espaços para novas alternativas políticas.
ÉPOCA – Por que o senhor resolveu voltar ao PDT?
Roberto Mangabeira Unger – Por duas razões. A razão maior é a determinação de trabalhar por um projeto de poder que possa servir ao ideário de uma alternativa nacional. Eu colaboro há muitos anos com Ciro Gomes. Vejo na candidatura presidencial dele um caminho para este projeto e nós estamos convencidos de que o PDT, um partido no qual militei por muitos anos, é a melhor base partidária para isso. Há uma razão menor, porém importante para essa mudança, que tem a ver com a situação do PMDB, partido em que eu estava. Vejo que a causa produtivista, os interesses do trabalho e da produção, e os emergentes como sua base social mais importante estão há muito tempo órfãos de um agente político.
E tinha a ideia de que o PMDB, com sua base municipal, poderia desempenhar essa tarefa. Mas perdi a parada. O documento que o partido lançou, Uma ponte para o futuro, não tem uma palavra sobre educação, desigualdade e os interesses da economia real, da produção e do trabalho. É um documento quase exclusivamente preocupado e comprometido com o fiscalismo financista. E aí não era possível continuar no partido diante dessa definição programática contundente.
ÉPOCA – Por que o senhor acha que a candidatura do Ciro Gomes, que já disputou e perdeu duas eleições presidenciais, teria agora chances de decolar?
Mangabeira Unger – Apoiei o Brizola em duas candidaturas presidenciais e o PDT apoiou o Ciro Gomes nas duas candidaturas presidenciais dele. Então isso aí não é uma invenção recente, é uma trajetória que vem há muito tempo. Esta será nossa quinta tentativa. A Bíblia Sagrada diz que precisa ter sete (risos). O primeiro requisito em política é tenacidade. Além disso, a crise múltipla que vivemos é uma oportunidade extraordinária para o avanço de uma alternativa. O Brasil precisa de outro rumo.
ÉPOCA – Qual é seu diagnóstico da crise?
Mangabeira Unger – Estamos vindo de um período histórico em que as bases de desenvolvimento do Brasil foram a popularização do consumo de um lado – uma espécie de nacional-¬consumismo – e a produção e exportação de commodities, de produtos primários pouco transformados, de outro lado. A agropecuária e a mineração pagaram a conta do consumo. Nesse período do nacional-consumismo, construímos no Brasil uma espécie de condomínio de rentismos.
A massa pobre embaixo recebe o dinheiro das transferências sociais – essas, sim, justificadas, porque resgatam as pessoas da pobreza extrema. No meio, as corporações da classe média recebem suas prebendas. Em cima, os ricaços são beneficiários dos juros da dívida pública e do crédito subsidiado dos bancos públicos. E todo mundo fica satisfeito, aplacado, cooptado. As circunstâncias do mundo viraram e inviabilizaram a continuação desse modelo. Nós precisamos agora de outra estratégia.
ÉPOCA – Qual seria essa estratégia?
Mangabeira Unger – Essa lógica de cooptação, paga pela riqueza natural, mata o país e não faz o essencial, que é providenciar instrumentos para o dinamismo brasileiro. Agora, precisamos de uma lógica de empoderamento. O grande atributo do nosso país é sua extraordinária resiliência, uma vitalidade assombrosa. E nossa tragédia histórica é negar instrumentos à maioria dos brasileiros para transformar essa vitalidade em ação construtiva. Qual é o ator mais importante no Brasil hoje? É uma pequena burguesia empreendedora mestiça que está surgindo no Brasil profundo.
Andei o país todo, Estado por Estado, e essa pequena burguesia empreendedora, que nós chamamos de emergentes, é apenas a linha de frente. Atrás dela, vem uma multidão de trabalhadores ainda pobres, porém já convertidos a uma cultura de autoajuda e iniciativa. Chamamos de batalhadores, porque são pessoas que trabalham dia e noite. Às vezes, têm dois ou três empregos. Não acreditam em política e em partidos políticos, não têm instrumento político. Mas eles, os emergentes, já estão no comando do imaginário popular e são a vanguarda do povo brasileiro. O projeto que eu estou defendendo é um projeto para eles, baseado em oportunidades econômicas e capacitações educacionais e que não pode ser operado dentro dos limites de nosso nacional-consumismo. Exige algo diferente: a democratização do lado da oferta, e não apenas da demanda. Uma grande diferença entre democratizar a oferta e democratizar a demanda é que a democratização da demanda se pode fazer só com dinheiro, enquanto a democratização da oferta exige reorganização, inovação institucional.
ÉPOCA – E como se faz essa democratização da oferta?
Mangabeira Unger – A preliminar é resolver a situação fiscal do Estado. E aí há uma convergência com a pseudo-ortodoxia que campeia no Brasil, o fiscalismo financista. Há um imperativo preliminar de realismo fiscal, mas esse imperativo tem de ser entendido e abraçado à luz de dois princípios. O primeiro princípio é uma visão de seu objetivo. O objetivo não é ganhar a confiança financeira, submeter a definição de nosso rumo aos interesses e aos preconceitos do rentismo financeiro.
O objetivo é o oposto. O objetivo é assegurar que o governo e o país não dependam da confiança financeira para avançar. E a realização desse objetivo é mais importante que a gastança pública como meio de recuperar a economia, esse keynesianismo vulgar que praticamos no Brasil. O segundo princípio é que o realismo fiscal não se pode efetivar apenas focando os 10% do Orçamento que são gastos discricionários. Esse é o debate que temos tido no Brasil. Aí não há ajuste. O ajuste só pode ser realizado se tratarmos dos mais de 90% do Orçamento do Estado que são gastos obrigatórios.
ÉPOCA – Se o senhor concorda que a questão fiscal é urgente e precisa ser resolvida, por que é tão crítico do documento do PMDB?
Mangabeira Unger – Há muitos pontos de contato ali, mas o silêncio sobre as bases de uma estratégia de desenvolvimento muda completamente o sentido daquelas afirmações. Não é só que o documento seja incompleto. É que, na falta do mais importante, aqueles compromissos com o saneamento fiscal ganham um significado completamente diferente. Uma coisa é julgar que a rearrumação fiscal por si só gera confiança financeira, a confiança financeira produz investimento e o investimento traz crescimento. Isso é uma condição necessária, porém muito longe de ser suficiente.
É apenas a porta de entrada de um novo projeto de país, mas não é o projeto de país. Defendo, por exemplo, há muitos anos, uma reforma da Previdência com a fixação de uma idade mínima para a aposentadoria. A repactuação do condomínio de rentismos implica sacrifício para o país. Mas o sacrifício só será legitimado e, portanto, só será aceito e executado se ele for visto como a contraparte de um projeto de democratização de oportunidades. O país não aceitará o sacrifício em troca de nada, só porque é do agrado dos bancos ou do rentismo financeiro disciplinar fiscalmente o Estado. O acerto fiscal tem de ser entendido no bojo de um projeto maior, que interesse à maioria. Na falta disso, esse acerto fiscal necessário será desmoralizado e diminuído como de fato vem acontecendo.
ÉPOCA – O PDT faz parte do governo Dilma. O partido não vai abrir mão da candidatura própria para apoiar o PT em 2018, como fez em outras campanhas presidenciais?
Mangabeira Unger – Isso não deve ocorrer e não ocorrerá.
ÉPOCA – O ciclo político do PT se esgotou?
Mangabeira Unger – E o do PSDB. Escrevi há muitos anos um artigo cujo título era “A serpente de duas cabeças” – as duas cabeças são o PT e o PSDB. Em todos esses grandes partidos brasileiros, há uma maioria que não acredita em alternativas. Um celebrado político brasileiro disse que há um caminho no mundo e há duas maneiras de descrevê-lo. Ele dizia não acreditar em alternativas, mas na humanização do inevitável. Isso representa a rendição aos interesses dominantes.
A tendência toda do PT e do ex-presidente Lula é, no máximo, buscar o meio-termo. Um ajuste que não implique uma descontinuidade da trajetória que seguiram até agora. Não me parece que eles estejam convencidos da necessidade de passar de maneira decisiva da distribuição de recursos para a distribuição de oportunidades.
Nota DefesaNet
Do Professor Mangabeira Unger tudo pode ser falado menos que ele não tenha idéias provocantes e instigadoras sobre o Brasil.
A atual Estratégia Naciona de Defesa (END) é de sua autoria. A END é a Base do pensamento militar brasileiro atual.
O Editor
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